A PSICOLOGIA NA PRÁTICA DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NA JUSTIÇA BRASILEIRA
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Thiago Colmenero Cunha
Anna Becker
Diego Pessanha Silveira
Camila Clipes Garcia
Laíza da Silva Sardinha
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
Conflitos são parte das relações humanas e, desta forma, devem ser analisados com o objetivo de serem reconhecidos como efeitos dos processos de alteridade. O convívio em sociedade pressupõe a responsabilidade da coexistência e interação com a diferença que nos constitui e, assim, os conflitos emergem nas mesmas relações que nos aproximam. Existem conflitos, entretanto, que promovem a ruptura da possibilidade de serem encaminhados pelos protagonistas dos mesmos e, por isso, necessitam de interlocução. Emerge, deste modo a questão: como deve ser conduzida tal intervenção? Na busca de uma pretensa solução, entendida hegemonicamente como dissolução da situação conflituosa, esta é submetida ao crivo do Poder Judiciário, no qual profissionais de Psicologia são convocados para tal atuação. Com o objetivo de qualificar (e problematizar) tal intervenção é construído o presente trabalho. Estudos de caso junto ao Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) permitiram afirmar a intervenção a partir do campo da ética: do empoderamento do usuário da Justiça e na promoção do protagonismo dos sujeitos na condução de suas vidas. As intervenções e ações propostas por psicólogas e psicólogos devem configurar-se como instrumento potencializador do diálogo entre a população e o poder público, tornando mais claro para o segundo as demandas colocadas pelos primeiros, de forma a dar um direcionamento às políticas públicas posteriores e traçar estratégias mais inclusivas para esse grupo, além de ser um espaço importante para os próprios usuários pensarem juntos suas próprias questões, avaliar suas posições enquanto cidadãos e construírem universos maiores de possibilidades. A Psicologia que se constrói transversalmente às ações judiciais deve apostar na coletividade, na multiplicidade, na diferença na convivência, nas trocas, nas relações em grupo. Investir, deste modo, em processos de singularização e no protagonismo daqueles que buscam a Justiça como interlocutora de seus conflitos.
Palavras-chave: Conflitos; Justiça; Psicologia.
Abstract
Conflicts are part of human relationships and, therefore, should be analyzed with the aim of being recognized as effects of alterity processes. To be in society presupposes the responsibility of coexistence and interaction with the difference that constitutes us and, thus, conflicts emerge in the same relations that approach us. There are conflicts, however, that promote the rupture of the possibility of being routed by the protagonists of the same and, therefore, they need interlocution. The question emerges: how should such intervention be conducted? In the search for a pretended solution, considered as a hegemonic solution to the conflict situation, it is submitted to the Justice, where psychologists work. In order to make better (and problematize) such intervention the present article is constructed. Case studies at Interdisciplinary Center for Citizenship Actions (Federal University of Rio de Janeiro, Brazil) affirm this intervention from the ethics field: from the empowerment of the Justice users and in promoting the protagonism of the people in the conduct of their lives. Interventions proposed by psychologists should be seen as a tool for fostering dialogue between the population and public authorities, making the latter more clear to the demands of the former, in order to give a direction to the subsequent public policies and to outline More inclusive strategies for this group, besides being an important place for the users themselves to think together their own issues, to evaluate their positions as citizens and to build other possibilities. Psychology that is constructed transversally to the judicial actions must bet on the collective, in multiplicities, at differences, in group relations, in singularization processes.
Keywords: Conflicts; Justice; Psychology.
Introdução
Conflitos são constituidores das interações humanas e, desta forma, devem ser reconhecidos como efeitos dos processos de subjetivação. A alteridade pressupõe coexistência e interação com a diferença intrínseca ao humano e, assim, os conflitos emergem nas mesmas relações que ora nos aproximam, ora nos afastam.
Existem conflitos, entretanto, que inviabilizam a possibilidade de serem encaminhados por aqueles que os experimentam e, por isso, necessitam de interlocução externa. Emerge, deste modo a questão: como deve ser conduzida tal intervenção?
Com a demanda de uma almejada solução, compreendida majoritariamente como a dissolução da situação conflituosa, esta é submetida ao crivo do Poder Judiciário. Este é criticado pela morosidade de sua possibilidade de atendimento à população, em função de crescimento de novos casos, o que acarreta um passivo em constante crescimento. Há ainda a diminuição de servidores magistrados, em relação ao número de processos.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituição pública brasileira que visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, principalmente no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual, o Brasil acumulava 99,3 milhões de processos em tramitação no fim de 2014. Na estimativa do CNJ seriam necessários 2 anos e 6 meses de trabalho dos magistrados para zerar o estoque atual, caso não fossem impetrados novos casos. O volume de prontuários cresce de 3 a 4% ao ano (demonstrados no gráfico abaixo) e o número de casos concluídos, de 28,5 milhões no ano de 2014, é em número menor daqueles abertos de 29,5 milhões no mesmo período, o que nos permite inferir que o passivo de projetos acumulados não diminuirá caso a estatística se mantenha.
A carga de trabalho de magistrados, do mesmo modo, aumentou tendo em vista que os concursos públicos não acompanham o crescimento da demanda pelo Judiciário, como o gráfico abaixo revela, na relação de processos por magistrado.
Objetivos
Nesse sentido, para além de pautar o “desafogamento” do Judiciário, é imprescindível, para o exercício da cidadania e da democracia, propor medidas que possibilitem que os indivíduos sejam protagonistas dos encaminhamentos de seus conflitos e enfrentem suas questões com autonomia, sem a imposição de uma decisão judicial. Propõe-se, deste modo, que a necessidade de pautar formas substitutivas de encaminhamento dos conflitos não seja motivada pela morosidade do Judiciário, ou pela quantidade de processos que já existem em tramitação, apenas. A questão é colocada de outro modo: não por um critério econômico –que aponte a diminuição do número de processos para um consequente aumento da possibilidade de atender outros mais. A aposta, ao contrário, se constrói no campo da ética: do empoderamento do usuário da Justiça e na promoção do protagonismo dos sujeitos na condução de suas vidas. E, por conseguinte, dos conflitos que eventualmente possam surgir.
Vianna (1999) aponta que não somente as pessoas recorrem cada vez mais ao Judiciário a fim de que se cumpram as leis, como também há uma expansão da capacidade normativa do sistema jurídico com a criação de leis que traduzam os interesses –individuais ou de grupos– em direitos. Estes produzem argumentos para que o Judiciário, cada vez mais, utilize meios e modos para um maior exercício de intervenção na vida da população, inclusive no âmbito privado. Consideramos importante frisar que o termo judicialização é comumente utilizado para definir a expansão do judiciário nas práticas cotidianas da vida. Judicialização da vida, portanto.
Marco conceitual
A judicialização é possível porque acredita-se na lei, como instância única (e oficial) para a promoção de justiça. Não exatamente a lei, operada como regra para uma melhor convivência, construída singular e regionalmente, a partir da cultura e dos processos subjetivos. Acredita-se n'A Lei. Ela se torna a referência para atuar, dificultando encaminhamentos singulares e criativos. E assim, "... nos tempos atuais, criaram toda uma máquina jurídica: os juízes, soberanos vitalícios, os promotores nos tribunais e o Ministério Público são instâncias que a todo o momento podem ser acionadas" (Nascimento, 2012, p.43). As leis são construídas para serem utilizadas com rigor, e em geral são vistas como sendo poucas ou insuficientes. A demanda é que outras sejam criadas, para melhor gerirem a vida. Porém, mais do que isso, a máquina jurídica se multiplica nas ações cotidianas, por exemplo, em casos envolvendo processos de guarda e execução de pensão alimentícia. Cada vez menos os protagonistas das histórias de suas vidas são alçados à condição de protagonistas da resolução de seus conflitos.
Os dispositivos legais inscrevem-se em regimes de verdade, podendo ser utilizados das mais variadas formas e em nome de diversas práticas (Marafon, 2010). Isso possibilita uma interferência direta na vida da população, pois, a partir dos códigos, o Estado tem como rastrear, por exemplo, quais indivíduos, pertencentes a quais grupos sociais, não cumprem uma determinada norma. Tem-se um mapa contendo os elementos críticos, desviantes ou 'em vias de desviar', que permitem punir ou regular todos os fatores de conjunto que possam ocasionar uma subtração das forças da população e, consequentemente, do Estado (Caliman, 2001). É através, por exemplo, das estatísticas de determinada região, que se opta por implantar determinadas políticas em certas comunidades e outras em locais diferentes. Esses dispositivos são fundamentais na implementação da biopolítica1, a qual permite aproximar setores da realidade relacionados com a vida, a natureza e o conhecimento, cujas mudanças ao longo do tempo são provocadas pela indústria, pela ciência, pela tecnologia.
Por que mediação?
Segundo Rodrigues Junior (2006), desde a Antiguidade a mediação sempre foi ferramenta utilizada para solucionar os conflitos existentes na sociedade. A partir do século xx acontece a estruturação desse sistema, largamente utilizados por diversos países; pode se citar como exemplo, Estados Unidos, França, Inglaterra, Irlanda, Japão e Bélgica. Somado a isso, o grande crescimento de indivíduos que passaram a ser consumidores numa sociedade capitalista fez emergir também sujeitos que buscam soluções para os problemas evidenciados em seus bens e a má prestação de serviços. Assim, nessa visão individualista, onde o judiciário torna-se mero solucionador de problemas individuais, surgem as causas repetitivas que são as grandes responsáveis pela aparente “crise do Poder Judiciário”.
Em 1976, ocorreu, nos Estados Unidos, a Pound Conference, que discutiu acerca da insuficiência do Poder Judiciário para prover opções às partes envolvidas em um problema comum, surgindo assim o sistema “multiportas”, que está firmado em cinco pilares: A natureza da disputa; Relacionamento entre as partes; Valor na disputa; Custo na resolução da disputa; Velocidade na resolução da disputa. Esse sistema disponibiliza métodos alternativos ao Poder Judiciário na resolução de conflitos, de modo que as partes, com mais alternativas, têm mais facilidade em encontrar uma forma de solução adequada ao conflito cerne da demanda. Os indivíduos sujeitos de uma demanda vislumbram mais opções, daí o nome múltiplas portas: uma política pública baseada na solução adequada dos conflitos de interesse com a participação decisiva das partes envolvidas, prevalecendo os vínculos dos indivíduos e uma maneira de fazer justiça de forma participativa.
O sistema criado nos Estados Unidos inspirou diretamente o Brasil na criação dos modelos que marcaram as mudanças de paradigma da resolução de conflitos. A mediação, apesar de vir sendo utilizada por instituições privadas desde a década de 90, foi reconhecida no Judiciário apenas recentemente no Brasil. A Resolução 125/2010 implementa o Sistema Multiportas, que coloca uma variedade de opções para a resolução de conflitos –como a mediação ou a conciliação. Posteriormente, em 2015, com a implementação do novo Código de Processo Civil Brasileiro,2 a lei n° 13.105 institucionaliza a mediação nos processos judiciais, determinando que todos os tribunais devem disponibilizar Centros Judiciários de Solução Consensual de Conflitos e realizar sessões de mediação e conciliação.
Assim, para que seja possível uma mudança do modelo da prática convencional de se fazer justiça, que não se baseie em formas punitivas, como por exemplo, o litígio, surge a mediação como meio alternativo capaz de propiciar o empoderamento dos indivíduos na resolução de suas questões possivelmente entendidas como judiciais. Este modelo somente é possível ao retirar o protagonismo do juiz, outorgando as partes envolvidas no conflito, ou até mesmo a um terceiro na sua resolução. Dessa forma, é necessário que haja uma mudança na racionalidade que se opera nas práticas jurídicas, que hegemonicamente entende os indivíduos como figuras incapazes na resolução de suas próprias questões.
O processo judicial, na maioria das vezes, gera desgastes aos envolvidos por conta da morosidade da justiça, acrescida a violência instituída pela construção dos processos e podendo também potencializar o desgaste das relações interpessoais, anteriormente abaladas. Nesse sentido, a lógica binária adversarial implantada nos processos corroboram que há uma verdadeira “batalha” jurídica, resultando em um vencedor e um perdedor da causa; desenvolvendo, como aponta Foucault (2005), uma espécie de guerra particular, individual, onde o procedimento penal será apenas a ritualização dessa luta entre os indivíduos.
Quando todo o processo jurídico é referenciado na busca de uma verdade absoluta que pertence a uma das partes, estamos fadados a não compreender os vários meandros e nuances que perpassam as relações. Como afirma Foucault (2005): "... parece-me que esse mecanismo da verdade obedece inicialmente a uma lei, uma espécie de pura forma, que poderíamos chamar de lei das metades” (p.34).
Portanto, não há compreensões da verdade que sejam absolutas, os entendimentos sobre determinadas situações podem se dar das mais variadas formas. Nesse caso, num processo jurídico as duas partes podem acreditar que detém a verdade absoluta, mas na realidade as duas concepções irão chegar a uma verdade final no processo.
Em oposição a essa lógica, a mediação promove o resgate de princípios constitucionais resguardados pela Constituição Federal do Brasil3 promulgada em 1988, como o da dignidade da pessoa humana, da cidadania e o da livre escolha ao permitir que a condução do processo ocorra através da autonomia dos indivíduos, partes co-construtoras de suas realidades. Para tanto, a mediação conta com a presença de um interlocutor4, alguém capaz de auxiliar na condução do processo. Ele vai tratar da relação humana, com o desafio de fazer com que as partes cheguem a um consenso sem que se opere a lógica da vingança e do medo.
Como aponta Verdi (2012):
Evidenciadas as limitações da lógica adversarial intrínseca ao processo judicial e da intervenção psicológica pericial para dar conta da complexidade das dimensões envolvidas nas disputas familiares, a Mediação passou, a partir do final do século xx, a conquistar espaço no âmbito jurídico. Resgatada pela pesquisa de caráter interdisciplinar, a Mediação preconiza uma nova abordagem aos conflitos (p.36).
Nesse sentido, o objetivo da mediação é propiciar a comunicação entre os envolvidos no conflito, de modo que, voluntariamente e com autonomia, construam encaminhamentos para a situação, que não necessariamente devem resultar na solução definitiva do conflito e nem na restauração dos vínculos. Deste modo, parte-se do princípio de que nem todos os conflitos necessitam de uma solução e de que nem todos os vínculos tenham a obrigatoriedade de serem restaurados, entendendo que apostamos na autonomia dos sujeitos.
Metodologia empregada: análise da proposta de mediação em um escritório da cidadania
O Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC) –programa de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Brasil)– oferta uma base comum de atividades de ensino, pesquisa e extensão, com vistas à realização interdisciplinar de estudos, publicações, assessoria técnica e assistência psicossocial e jurídica orientadas para a promoção do direito à cidadania. Dentre as várias ações destaca-se o escritório da cidadania, que se volta para a defesa dos direitos da população em condições de vulnerabilidade, através de atendimentos interdisciplinares como estratégias de acesso à justiça e garantia de direitos humanos. O NIAC busca, também, mobilizar, fortalecer e qualificar o debate junto à rede de profissionais da justiça, da educação e da rede de defesa e garantia de direitos. Além disso, visa criar espaços de discussão sobre os mecanismos institucionais capazes de promover o acesso às políticas públicas sociais e redução dos processos de vitimização e criminalização, por meio da permanente produção de novos saberes que contraponham à lógica dominante de manutenção das relações de poder estabelecidas.
As intervenções e ações propostas configuram-se como um instrumento potencializador desse diálogo entre a população e o poder público, tornando mais claro para o segundo as demandas colocadas pelos primeiros, de forma a dar um direcionamento às políticas públicas posteriores e traçar estratégias mais inclusivas para esse grupo, além de ser um espaço importante para os próprios usuários pensarem juntos suas próprias questões, avaliar suas posições enquanto cidadãos e construírem universos maiores de possibilidades.
Os atendimentos no escritório da cidadania, promovidos por discentes dos cursos de Psicologia, Direito e Serviço Social, são norteados por uma construção interdisciplinar inspirados nas pistas do método da cartografia.
Para os geógrafos, a cartografia –diferentemente do mapa, representação de um todo estático– é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo com os movimentos de transformação da paisagem. Alteração de temperatura, de pressão, de clima, de população, de chuva, de vento, de acontecimentos. Fatos e dados que não estão ali representados na bidimensionalidade de um desenho representativo, mas podem ser colocados transversalmente em uma cartografia, como uma fotografia momentânea que a todo momento se renova.
Diferente do método da ciência moderna, a cartografia não visa isolar o objeto de suas articulações históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, o objetivo da cartografia é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Nesse sentido, utilizando as palavras de Suely Rolnik (2006), “do cartógrafo se espera que ele mergulhe nas intensidades do presente para “dar língua para afetos que pedem passagem” (p.23). A cartografia é utilizada como perspectiva para entender os conflitos e dinâmicas relacionais dos casos que chegam ao NIAC de maneira ampla, contextualizada e múltipla.
Mais importante do que listar fatores que compõem uma problemática é revelar sua processualidade, mostrar as forças que os compõem, que relações de poder estão em jogo no plano estudado. Em conjunção com as pontuações de Michel Foucault (1986), compreende-se a história como um campo de forças em combate, onde se percebe a transitoriedade dos fatos, desconstruindo um suposto saber científico que propõe revelar a essência dos acontecimentos que estão no mundo, como se algo estivesse prestes a ser revelado, coletado. Essa reflexão nos impõe pensar a neutralidade da pesquisa quando está em campo, fazendo-nos questionar sobre como conjugamos o verbo conhecer, ao passo que propomos entrar em contato com o que não está dado, fugindo de uma ciência da representação.
Ao privilegiar as potencialidades e possibilidades em vez dos problemas e dificuldades, focalizam-se nos atendimentos interdisciplinares diferentes alternativas individuais e coletivas de superação das adversidades, valorizando as diferenças, a heterogeneidade e a diversidade de formas de aprender, pensar e estar no mundo. O interlocutor que está inserido nessa instituição se defronta com essas reflexões. Entender como é a vida, o cotidiano, o desenvolvimento, a família e os modos de ver e estar no mundo de quem solicita uma intervenção.
Apresentar questões e problemáticas do cotidiano, tornar visível o que já está visível, fazer aparecer o que está tão perto, o que é tão imediato, o que está continuamente ligado a nós mesmos, por isso, não o percebemos, fazer ver o que vemos. Como nos diria Foucault, como um diagnosticador do presente (Artières, 2004), tentar fazer as pessoas perceberem o que está para acontecer, não como um especialista que vai até um local para dizer verdades absolutas, mas alguém que estando junto com o território possa contribuir na reflexão contínua dos processos que a todo tempo acontecem. A serviço do que nos posicionamos? Como podemos atuar? O que desejamos produzir? Para aqueles que se inspiram no pensamento foucaultiano, essas são questões que passam a acompanhar e orientar o posicionamento profissional e institucional.
O entendimento da situação conflituosa que chega até os interlocutores, ou seja, a encomenda, refere-se a situações específicas de intervenção. Além disso, o conhecimento das redes que compõem os vínculos dos protagonistas do conflito é um aspecto fundamental para a construção da demanda, que é o resultado da análise da encomenda, e que nunca são espontâneas, mas produzidas tanto no encontro quanto previamente a ele, podendo se desdobrar em intervenções (Rossi & Passos, 2014).
Tal análise tem como objetivo transformar a encomenda em uma demanda na qual nós possamos realizar uma intervenção, com a dupla intenção de empoderar os sujeitos envolvidos no conflito, mas empoderá-los também de outra concepção de justiça, para que possam então sair do ciclo de violência que gerou a questão. Pretende-se, com a mediação, estabelecer uma “cultura de paz” que precisa ser entendida de uma maneira cautelosa, afinal, muitas vezes fala-se de paz mantida apenas por práticas silenciadoras e ocultamento de violações de direitos realizadas para a manutenção da ordem social.
Discussão e resultados
A cultura de paz que pretendemos promover diz respeito a uma nova convivência, na qual conflitos não sejam compreendidos de forma violenta, uma cultura que respeite as diferenças e a complexidade do humano. Uma cultura onde não haja, sempre que possível, vencedores ou perdedores, e onde uma razão não seja priorizada em detrimento de outra. Uma certa cultura onde a heterogeneidade viabilize que a intercessão ocorra a favor da interseção. A palavra intercessão vem do latim intercedere com uso registrado a partir do século xv, significa pedir a alguém por outrem, no caso servir como intercessor, ou como intermediário.
A palavra interseção vem da palavra secção, significando ato ou efeito de secionar, parte de um todo, também de origem latina e com uso formal a partir de meados do século xix. A derivação “interseção” pressupõe que esta “parte de um todo” seja uma parte em comum, como nos ilustra as teorias de conjuntos na matemática. Sendo assim, propomos uma cultura política onde não existe uma Verdade, mas um jogo de forças e linhas que se entrecruzam e produzem tensionamentos, que precisam ser compreendidos e encaminhados em função da própria urgência da realidade complexa dos casos, buscando as interseções e nós possíveis nos diversos encontros e desencontros.
A partir disso, os intermediários ou interlocutores devem ser instrumentalizados e capacitados; no entanto, a capacitação não deve resumir os conflitos das partes em problemas pontuais ou genéricos, sem problematizar a dimensão subjetiva que os envolve e o que aquele conflito acarreta para ambas as partes. O interlocutor deve conduzir as partes para pensar nos problemas postos, para que possam se expressar verdadeiramente em um espaço protegido, e ao reconhecerem seus interesses e limites, estejam empoderadas para encaminharem seus conflitos.
Não cabe ao interlocutor um papel investigativo, da busca de fatos reais. Caso venha a fazer perguntas, essas devem servir para que o diálogo seja estabelecido entre as partes, para que sinalizem a partir de suas falas o que fomenta o conflito e o que possam fazer com que este tenha um encaminhamento satisfatório.
O texto A formação do cartógrafo (Pozzana, 2013) nos ajuda a pensar sobre este processo que também constrói o interlocutor, e que não deve estar pautado em modelos predeterminados, mas no acesso ao plano de forças que constitui o local de mediação. Torna-se imprescindível ao interlocutor, assim como o cartógrafo, sua abertura corporificada ao plano coletivo do conflito.
Por que mediação no NIAC?
O Escritório da Cidadania é uma das frentes do Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC), programa de Extensão Universitária, em funcionamento desde 2006 na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este tem como foco principal o atendimento integrado à população, com eixo em questões voltadas aos Direitos Humanos. O atendimento de demandas faz-se de forma interdisciplinar, tendo como objetivo explicitar e colocar em análise os processos contemporâneos de judicialização da vida materializados nos casos que cotidianamente se apresentam como ‘problemas a serem resolvidos’ (Decotelli, 2012).
O presente estudo parte da necessidade de pensar a mediação de conflitos nos atendimentos feitos no Escritório que, a partir do encontro entre a Psicologia, o Serviço Social e o Direito, encontra diversas potências e diversas dificuldades nos atendimentos, reuniões e estudos de casos. As ações se dão através de uma escuta qualificada que avalia os conflitos percebidos para a construção conjunta de uma demanda. A partir dessa demanda, possíveis intervenções são pensadas respeitando-se a autonomia dos usuários atendidos. No entanto, a construção dessa demanda não é uma tarefa fácil.
Antes, um longo caminho deve ser percorrido, tomando-se como ponto de partida o acolhimento, momento em que ocorre o primeiro contato do usuário com os extensionistas das três áreas. O acolhimento é um momento para –como o próprio nome sugere– acolher o usuário, explicar o funcionamento do escritório e iniciar o processo de escuta com o objetivo de mapear as redes, processo fundamental para a constituição de um campo problemático e possíveis demandas, incluindo propostas de encaminhamento.
Vale ressaltar a importância do mapeamento de redes, conjunto de vínculos interligados, como uma forma de nos aproximarmos dos agenciamentos que compõem o indivíduo, a partir de uma visão que rompe com a ideia de subjetividade pautada na 'interioridade' do sujeito. Dessa forma, entendemos que a subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares (Guattari & Rolnik, 1986).
É importante ressaltar que a partir de determinado período verificou-se uma frequente prática de judicialização dos casos no Escritório, a qual propiciou questionamentos a respeito do papel deste e que trouxe a mediação como possível ferramenta para repensar as práticas das três áreas.
O papel do interlocutor, que pode ser assumido por uma pessoa ou mais, torna-se mais rico e qualificado quando realizado em conjunto, por uma equipe interdisciplinar. Isso torna o trabalho mais abrangente por conta das diferentes experiências dos interlocutores e das discussões entre eles, que tem como resultado ações não restritas a um campo de saber, permitindo um leque de novas possibilidades.
Segundo Matos, Pires e Campos (2009), o trabalho interdisciplinar pressupõe novas formas de relacionamento, tanto entre os membros da equipe quanto entre a equipe e os usuários do serviço. O modelo fragmentado de organização do trabalho, no qual cada indivíduo realiza suas funções sem uma integração com as demais áreas, constitui-se como uma das razões que dificultam a realização de um trabalho mais integrador.
Ainda segundo esses autores, a atuação interdisciplinar coloca a necessidade das relações sustentarem-se na cooperação e na troca entre as disciplinas, na interação entre os membros da equipe, na articulação dos diversos modos de saber e fazer, na horizontalização das relações e na tomada de decisões a partir de espaços para a elaboração e expressão de subjetividades (Matos, Pires & Campos, 2009). Nesta perspectiva, a prática interdisciplinar coloca-se como potencializadora, pois permite uma compreensão ampliada do indivíduo, um outro entendimento sobre o usuário e sua vida. Evita-se, assim, uma visão reducionista que enxerga o sujeito unicamente a partir de um único saber e aproxima-se do viés de que os usuários são atravessados por inúmeras relações sociais.
Além destas questões, a aposta na interdisciplinaridade é resultado de reflexões que percebem a força que esta tem em impulsionar transformações no modo de pensar e de agir em diferentes sentidos, pois retoma a ideia de que vivemos em uma grande rede de interações complexas, nas quais todos os conceitos e teorias estão conectados entre si. É uma forma de pensar o trabalho coletivo que aposta na complexidade dos processos, nas relações, no diálogo, na problematização e na atitude crítica (Thiesen, 2008).
Conclusões
Entender e substituir práticas judicializantes por apostas que fazem circular o diálogo só pode ser feito a cada passo, a partir de reflexões constantes, permitindo-se pensar diferente, inventar, possibilitar questionamentos que façam novas formas de existência. É preciso que nós nos analisemos cotidianamente. Onde estamos nessas discussões e vivências? Como entramos em jogo nessas relações de poder que se apresentam para nós nos atendimentos? É preciso que nós nos desmilitarizemos, retiremos a lógica de guerra, de combate, de duelo, de guerra de nosso modo de ação. A solução para um mistério não é a vingança nem o mimetismo do violador, mas o restabelecimento da confiança no comum.
As lições aprendidas na vida profissional, os estudos desenvolvidos, as experiências nos atendimentos traz ao aprendizado da prática profissional podendo fortalecer ainda mais um pensamento crítico da realidade propondo políticas, projetos e programas voltado para essa temática e para essa população. A cartografia funciona como proposta ético-política de intervenção para pensar a mediação de conflitos interpessoais –para além de uma prática de trabalho, a entendemos como uma perspectiva para pensar a vida.
Apostar na coletividade, na multiplicidade, na diferença na convivência, nas trocas, nas relações em grupo. Apostar na vida. A atividade política enquanto virtude humana é produtora de acordos e contratos provisórios que demandam atividade e potência, e não temor, medo e obediência. É preciso estranhar o que parece óbvio, aquilo que parece pronto. Frente a tanta massificação e individualização, é fundamental investir em processos de singularização.
Referências bibliográficas
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Notas
1. Conceito entendido pela "maneira como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à pratica governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças..." (Foucault, 2008, p. 431).
2. Novo Código de Processo Civil : Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (Brasil, 2015).
3. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (Brasil, 1988).
4. O termo interlocutor foi empregado por entendermos que seria o adjetivo que melhor caracterizaria a função do sujeito que auxilia na construção de um encaminhamento.