TRABALHO E SUBJETIVIDADE NO MODELO DE GESTÃO DA QUALIDADE TOTAL Descargar este archivo (01 Trabajo Subjertividad - MLGava SRLucc.pdf)

Maria Luiza Gava Schmidt

Professora e Supervisora de Estágio do Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho -UNESP/ASSIS/SP.

Sérgio Roberto de Lucca

Professor Assistente da Área de Saúde do Trabalhador do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAM

Resumo

O objetivo deste artigo é discutir a influência do modelo de gestão de qualidade total na saúde psíquica dos trabalhadores, uma vez que se trata de uma técnica de gestão multidisciplinar formada por um conjunto de programas aplicados no controle do processo de produção das empresas, para obter bens e serviços pelo menor custo e melhor qualidade, objetivando atender as exigências e a satisfação dos clientes. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa com a análise dos discursos dos trabalhadores de uma empresa agroindustrial que implantou o sistema de gestão de qualidade. Foram entrevistados 68 trabalhadores a partir de um roteiro de entrevista semi estruturada e tomando como referência a Psicodinâmica do Trabalho, na proposta de Christophe Dejours. Da análise categorizada dos discursos dos sujeitos da pesquisa observou-se que a utilização deste modelo enquanto uma ferramenta de poder para a adequação dos trabalhadores contribui para a alienação na relação homem-trabalho por meio da captura da subjetividade. Concebe-se que a análise deste tema é relevante para área da saúde mental, uma vez que essa forma de gestão pode trazer efeitos desfavoráveis à saúde psíquica dos trabalhadores.

Palavras-chave: Qualidade Total, Relações de Poder, Sofrimento Psíquico, Psicodinâmica do Trabalho, Subjetividade.

 

Abstract

The aim of this paper is to discuss the influence of the model of total quality management in the psychological health of workers, since it is a multidisciplinary management technique consists of a set of programs used to control the production process of companies, for goods and services at lower cost and better quality, aimed at meeting the demands and customer satisfaction. To this end, we carried out a qualitative analysis of the speeches with the employees of an agroindustrial company that implemented the quality management system. 68 workers were interviewed from a semistructured interview guide and with reference to the psychodynamics of work, the proposed Christophe Dejours. The categorical analysis of the speeches of the study found that using this model as a tool of power to the adequacy of workers contributes to the alienation in the relationship between man and work through the capture of subjectivity. It is conceived that the analysis of this issue is relevant to the mental health area, since this form of management can bring adverse effects to the mental health of workers.

Keywords: Total Quality, Power Relations, Psychological Stress, Psychodynamics of Work, Subjctivity

Introdução

O Programa de Qualidade Total ou TQC -Total Quality Control - destacou-se como modelo de gestão organizacional nas últimas décadas do século xx, exigindo mudanças na qualificação dos trabalhadores e crescente intervenção destes nos processos produtivos, com maior participação e envolvimento racional e emocional.

A elaboração do modelo alicerçou-se inicialmente nos princípios de Administração Científica de Taylor (1985), sobretudo os relacionados às técnicas de controle e produtividade. Algumas premissas pautadas no desenvolvimento do potencial mental dos trabalhadores, através de treinamentos contínuos e planejados e na avaliação da “moral” das equipes também serviram de base para a implementação deste método de gestão.

A partir dos anos 70, o mundo capitalista presenciou a crise do padrão de acumulação taylorista/fordista, em vista disto, várias transformações ocorreram no processo produtivo o que intensificou as disputas da concorrência capitalista e aflorou a necessidade de produzir com ênfase na qualidade( em termos de produtos e serviços).

Para atender a nova demanda do mercado foram criadas novas formas de acumulação flexível, o downsizing, novas tecnologias. Tais mudanças surgiram embasadas no modelo japonês – Toyotismo (Antunes, 2009). O qual prescreve ”o primado do êxito, a supervalorização da ação, a obrigação de ser forte, a adaptabilidade permanente, a canalização da energia individual nas atividades coletivas, o desafio permanente” ( Chanlat, 1995,p. 121).

Por conseguinte, a temática da “qualidade total”, tornou-se então compatível com a tendência intrínseca do sistema produtivo. Sob este prisma, para garantir a sobrevivência no mercado, os precursores do TQC, adotaram como princípios: a necessidade de produção e fornecimento de produtos e/ou serviços que atendam concretamente às necessidades dos clientes; ênfase conferida à produtividade e competitividade e redução de custos; o conjunto de procedimentos para identificação de problemas críticos da organização; a melhoria nos métodos e meios; o estabelecimento de planejamento estratégico, através de diretrizes de controle, melhoria contínua, entre outros.

O processo de implementação da qualidade total é organizado mediante o atendimento de requisitos pré estabelecidos pelas normas regulamentadoras ISO (Internacional Standard Organization) para o processo de certificação. A avaliação dos resultados da sua implementação, manutenção e controle acontece em prazos pré-estabelecidos, variando em visitas a organização nos períodos de dois a seis meses, com vistorias feitas pelas auditorias. De acordo com Maranhão, “as auditorias atuam como extraordinários sensores e podem desencadear poderosos atuadores (ações corretivas) do sistema de qualidade, identificando a eliminação das causas dos problemas” (Maranhão, 1994, p. 85).

Dejours & Bégue (2010), descrevem que a qualidade total é um sistema voltado para uma mudança substancial nas práticas do cotidiano de trabalho, com rompimento do “status quo”, no sistema de gestão. Os autores salientam que sua a certificação bem como os critérios, “requisitados para obtenção das certificações exigidas pelo mercado, transformam a qualidade total quando muito em ideal, portanto em uma ficção, em uma condição sine qua non para que o produto ou serviço ingresse no trabalho” ( Dejours e Bègue, 2010, p.51).

Segundo Chanlat (1995, p.124) “este método de gestão, ainda que apresente determinados aspectos muito positivos para as pessoas (valorização, reconhecimento, individualização dos desempenhos etc...) pode ser uma importante fonte de tensão”.

Schmidt (2000), ao analisar os efeitos da adoção deste método de gestão numa empresa do ramo industrial do setor agrobusinness , apontou que a supertensão permanente referida por Chanlat ( 1995), decorre sobretudo dos dispositivos de poder para implementação e manutenção do TQC, como dominação, sujeição, coação, coerção, controle, vigilância, intimidação, entre outros, os quais atuam no sentido do aprisionamento da subjetividade do sujeito ao sistema.

O sistema em questão, que visa ao aperfeiçoamento contínuo da organização, bem como dos trabalhadores que dela fazem parte, promove mudanças bruscas no processo produtivo, tanto em termos de estrutura física (equipamentos, materiais, ambientes de trabalho), como também na estrutura dinâmica da organização (metas, planejamentos, controles, métodos e outros), implicando novas atitudes, posturas, comportamentos, além da concepção das pessoas que integram a organização.

“ O resultado concreto é não apenas uma sobrecarga gigante de trabalho (preenchimento da documentação e consolidação dos dados da “qualidade papel”), mas também um slogan que leva, inevitavelmente, à fraude. Para obtenção da certificação, aprende-se a dissimular o real do trabalho, ou seja, aquilo que aquele que trabalha se dá conta devido à resistência do mundo á maestria técnica” (Dejours e Bèngue, 2010, p.51).

A busca pela melhoria de produtos e serviços prestados ou oferecidos pelas organizações origina um jogo de competitividade e concorrência, que ocupa um lugar central no meio organizacional. Este movimento, por sua vez, gera conseqüências desfavoráveis nas relações de trabalho e na saúde mental dos trabalhadores. Beneficiário da qualidade total do produto, o trabalhador passa a ser também vítima desse sistema de gestão controlador.

Cria-se assim, o paradoxo, à medida que os princípios da Qualidade Total, para o mundo interior à empresa, é a promessa da satisfação total (produtos, clientes, serviços) ao passo que a obtenção desta se dá em função do próprio sofrimento do trabalhador.

Convém, ainda, sublinhar que as novas relações de poder, engendradas pelo TQC, que culminam no fortalecimento do próprio sistema e otimização da produtividade, são também fontes de alienação dos trabalhadores, pois vislumbram a gestão das subjetividades, através de uma internalização forçada das metas e objetivos da empresa, buscando negar a exploração da força de trabalho e o conflito capital - trabalho ( Nardi e col., 2002).

Permeado pela pressão o que se tem é a emergência do sofrimento psíquico que aos poucos empurra o trabalhador para a desestabilização e fragilização da saúde. Em vista disto, neste artigo pretendemos exemplificar as percepções dos trabalhadores inseridos numa empresa que implantou este modo de gestão, referendando-os na Psicodinâmica do Trabalho na proposta de Christophe Dejours ( 1992).

Nesta perspectiva, os trabalhadores puderam falar e manifestar suas experiências acerca do TQC, bem como apreender a emergência “dos sofrimentos, das angústias, dos receios, dos medos, dos desafios, das engenhosidades diante de dificuldades e imprevistos tão freqüentes, dos prazeres da superação e resolução de problemas aparentemente insolúveis” (Uchida, e col, 2010, p.198).

Os discursos foram classificados em temáticas, apresentadas sucintamente, de modo a contribuir para reflexões e discussões sobre a qualidade total, uma vez que essa forma de gestão pode trazer efeitos desfavoráveis à saúde psíquica dos trabalhadores, sobretudo em decorrência dos variados dispositivos de poder que são engendrados no contexto laboral para que os trabalhadores se adequem ao modelo.

Método

Para retratar a vivência da qualidade total obtivemos por meio da palavra “viva, que nos toca, engajada, subjetiva, vinda de um grupo de trabalhadores” ( Dejours, 1992,p.149) posto que, nos embasamos metodologicamente na Psicodinâmica do Trabalho, a qual “ visa essencialmente a vivência subjetiva, e se interessa pelo: “comentário que inclui concepções subjetivas, hipóteses sobre o porquê e como dá a relação vivência trabalho (Dejours, 1992, p.149).

Utilizando entrevistas individuais semi-estruturadas buscamos nos discursos o valor dos comentários “e, sobretudo, os comentários que são objeto de discussão e de posições contraditórias no grupo. Em outro momento da investigação, por exemplo, identificamos a prevalência da descrição operatória em relação ao comentário” ( Dejours, 1992, p.149). A título de exemplos citaremos alguns comentários que nos indicam as percepções de trabalhadores sobre a vivência cotidiana no modelo de gestão da qualidade total.

O universo recortado abrange trabalhadores de uma empresa do ramo industrial do setor agrobusinness, que passaram pelo processo do TQC. Eles dispõem de diferentes qualificações e ocupações, pertencem ao sexo masculino, com estado civil e tempo de serviço superior a cinco anos. Trata-se de pesquisa qualitativa, uma vez que a temática trabalho-subjetividade, conserva um caráter não mensurável.

Resultados

Sob a égide dos discursos dos trabalhadores sobre a situação de trabalho regida pelo modelo da qualidade total, revelaram-se temas que foram agrupados em categorias de análise e apresentados na sequencia:

Dominação Ideológica do TQC

De acordo com Pagès e col. (1993), a organização tem uma capacidade de influenciar o inconsciente do indivíduo, ligando-o a ela de maneira quase indissolúvel, deixando-o assim sob o seu domínio. Nesse sentido, os autores afirmam que a estrutura inconsciente, os impulsos e o sistema de defesas dos trabalhadores, seriam modelados pela organização, de maneira que estes o reproduziriam, não apenas por “motivos racionais, mas por razões mais profundas, que escapam à sua consciência” (Pagès e col, 1993, p. 144).

Tal processo de influência da organização no inconsciente dos trabalhadores pode tornar-se fonte de angústia e de prazer, o que para esses autores seria um dos aspectos mais importantes do poder da organização.

As políticas de gestão da qualidade total provocam reações positivas e negativas, que acarretam ao mesmo tempo vantagens apreciadas e de dependência. Seus princípios são construídos, ora pela aprovação, ora pela critica: os trabalhadores gostam das mudanças trazidas pela implantação do sistema, mas a temem por não conseguir saber o que vem pela frente.

Neste contexto, nos deparamos com um trabalhador “coisificado”, “cristalizado”, que repete um discurso ideológico a serviço da organização, transformando-se num instrumento do próprio sistema, do qual ele não se dá conta, em função da “alienação psicológica”. Essa expressão foi utilizada por Pagès e col.(1993), para explicar que o indivíduo é ao mesmo tempo efeito e condição para a empresa funcionar. Posto que “a organização torna-se objeto de identificação e de amor, fonte de prazer, sendo também aquela que alimenta e fixa a sua angústia, pois ele torna-se dependente dela, no sentido total da palavra, não apenas para a sua existência material, mas também para a integridade de sua própria identidade. (Pagès e col, 1993, p. 147)

A maneira como o TQC é apresentado, pelas bibliografias que tratam do tema, estão imersas num discurso ideológico persuasivo, assim exemplificados: “Trabalhando com qualidade, você terá menores riscos e a maior estabilidade para a sua empresa no mercado. Ela será sólida, pois será saudável e pró-ativa (Maranhão, 1994, p. 4)”. “A meta mais imediata de uma empresa é a sua sobrevivência à competição internacional” (Campos, 1994, p. 21). E, acrescenta: “o controle da qualidade total é um novo modelo gerencial centrado no controle do processo, tendo como meta a satisfação das necessidades das pessoas”. (Campos, 1994, p. 41).

Nas respectivas citações, os autores incitam o “prazer” de investimento no objeto (Qualidade), que serve perfeitamente às finalidades da organização, reproduzindo-se nos discursos dos trabalhadores, como, por exemplo: “É a qualidade do produto que tem na empresa, a certificação abre novos caminhos, divulgação do produto, por exemplo: a ISO” (sic).

Este discurso mostra-nos que a ideologia é tomada como uma verdade, tornando-se “[...] uma entidade anônima que é investida, assim como suas regras, suas políticas, seus princípios, e não mais uma pessoa. Isto garante uma reprodução mais segura da organização, com menor sujeição aos acasos conjunturais das relações interpessoais, e ao mesmo tempo, uma sujeição mais rigorosa do indivíduo” (Pagès e col, 1993, p. 148). Tendo em vista que, a competitividade da empresa bem como sua expansão resultam de um selo de qualidade, a ISO.

Apenas o fato da empresa ter um produto certificado, uma crença é formulada e legitimada pelo trabalhador, como exemplificado no discurso:Com a certificação o produto é mais bem visto no mercado” (sic). O crédito da verdade não é apenas da ordem prescrita pela ideologia, mas sobretudo da satisfação ideológica à qual o trabalhador adere, reconhecendo-se no sistema.

Outro trabalhador relatou que em sua concepção: “A ISO é um grupo de empresas que procura estabelecer o melhor desempenho dos produtos e da pessoa ... é para a gente ter mais condições de trabalho ... tem equipamentos de proteção do trabalho, sempre teve, mas mudou bastante coisa” (sic)

No relato, percebemos que a satisfação do trabalhador resulta da melhoria das condições de trabalho, um alto estágio da alienação à concepção de que ele crê que o sistema em si pode lhe proporcionar uma vida melhor.

Ao assumir o compromisso com o sistema, os trabalhadores incorporam as metas da empresa, aumentando sobre elas a sua responsabilidade. Assim, um dos nossos entrevistados declarou: “A ISO acho que no meu jeito de entender é o compromisso que nós temos com a qualidade (sic). Esse discurso demonstra como os princípios do TQC vão sendo legitimados de acordo com o que a ideologia prescreve, ou seja, a de que a luta pela sobrevivência da empresa e sua competição internacional é de responsabilidade de cada pessoa da empresa, e “cada um deve comparar os seus itens de controle com os melhores do mundo” (Campos, 1994, p. 21).

Alguns relatos também mostraram que as atitudes, a postura e os comportamentos, bem como a concepção das pessoas que integram a organização precisam ser adaptadas à nova ordem e elucidam a dominação deste modo de gestão: “As pessoas têm que mudar o seu modo de trabalhar, junta as pessoas aos mesmos objetivos, antes cada um trabalhava de sua maneira, hoje os funcionários seguem um lista de parâmetro”(sic).

O sistema modula profundamente o ritmo de trabalho e produz nos trabalhadores um sentimento de satisfação com a tarefa, para ter uma direção a seguir. Isso foi evidenciado nos seguintes relatos: “Hoje os funcionários tem parâmetros para se guiar”; Hoje tem parâmetros, formas de trabalhar, foi passado uma lista de parâmetros, antes chegava para trabalhar e não tinha uma lista de normas, hoje todos fazem a mesma coisa da mesma maneira”(sic).

O resultado disso produz uma imagem nos trabalhadores de aumento da integração grupal: “O pessoal trabalha em conjunto, a equipe está mais unida, integrada” (sic). Observa-se assim que “a qualidade total seria um dispositivo supostamente capaz de suplantar o complicado processo que representa não apenas a mobilização de profissionais gabaritados para fazerem valer sua experiência, bem como as formas de cooperação horizontais e verticais” ( Dejours e Bèngue, 2010, p.49).

Ao fazer referência à alienação psicológica Pagès e col. (1993, p.96) concebem que, “[...] o fenômeno de transmissão e interiorização de idéias não se limita à esfera ideológica dos trabalhadores... é enraizada na vida do indivíduo, ela é o sistema através do qual o indivíduo simboliza o conjunto de suas relações sociais, e é produzida por estes”.

O sistema determina não somente o desenvolvimento das tarefas, mas também como agir com as pessoas: “Depois que entrou a ISO eu mudei o jeito de atender as pessoas...de agir...com a empresa tenho mais compromisso com a situação, tenho interesse em produzir mais e com mais qualidade (sic).

Uma série de mudanças pôde ser percebida na relação chefia/subordinado, sendo as mais expressivas: o aumento do diálogo entre chefia e subordinado, o reconhecimento do subordinado pelo chefe, em função da tarefa bem executada, bem como uma falta de reconhecimento com relação ao salário e benefícios dos subordinados.

Não nos surpreende encontrar tais resultados, pois na nova estrutura produzida pelo TQC, o poder não é mais tido na rede de relações hierárquicas, ele está engendrado em todos os trabalhadores da empresa. Conforme exemplificado no seguinte discurso: “antes tinha um chefe geral para comandar tudo, hoje tem engenheiro, gerente, supervisores, é um grande conjunto trabalhando com o mesmo objetivo”(sic).

Existe, por parte de outro entrevistado, uma percepção de que sua postura de chefia mudou: “mudei a forma de pensar sobre a relação chefia-subordinado antes considerava que a relação bastava no autoritarismo, hoje está na base da conquista” (sic). Este discurso revela que esta forma de gestão é extremamente persuasiva, sua estratégia busca cativar o subordinado e as táticas utilizadas são o diálogo e o elogio.

Mecanismos de aumento da comunicação entre chefia e subordinados podem ser utilizados também para passar informações sobre o andamento da eficiência e eficácia organizacional: “A chefia , a parte da comunicação, fala mais com o funcionário, explica mais” (sic).

A comunicação, que aparece de forma mais fluida entre chefia e subordinado, pode ser também associada à necessidade de uma manutenção dos princípios do sistema, visto que, para a grande maioria dos funcionários, o chefe passou a esclarecer mais as dúvidas, explicar mais as tarefas, estar mais presente. Quanto menos se manifesta esse poder de dominação, mais eficaz ele é; sua intervenção tem, sobretudo, um valor que se expressa também pelo elogio.

Sabendo que esta instância dispõe de mecanismos de persuasão, não há mais limites para fazê-lo. Porém, esse sistema é mais interno do que externo ao indivíduo: quanto mais elogiado o trabalhador for, com relação a uma atividade, maior será sua necessidade de melhorá-la para aumentar os elogios. Isto funciona por autocontrole, os controladores (chefias) criam de fato uma submissão espontânea.

A indução para trabalhar bem

 Nesta forma de gestão, os trabalhadores seguem os padrões pré-estabelecidos no Manual da Qualidade, nele estão normatizados os parâmetros pelos quais deverão se guiar, sendo induzidos a trabalhar bem, sem falhas. Como expresso por um trabalhador:As pessoas têm que mudar o seu modo de trabalhar... os funcionários seguem uma lista de parâmetros... hoje todos fazem a mesma coisa da mesma maneira”(sic).

O problema é que a ideologia de perfeição poderá tornar-se fonte de sofrimento no trabalho, devido a obrigação em desenvolver todos os parâmetros propostos para evitar a queda de qualidade: “A empresa tem que produzir bastante e ter uma boa qualidade, depois que pega o certificado tem que trabalhar para não perder o certificado” (sic).

A dominação desse sistema padronizado sobre o inconsciente tem diferentes aspectos, destacando-se a identificação, o sentimento de culpa e o sentimento narcisista de fracasso.

A identificação ocorre quando os trabalhadores procuram fazer adequadamente as tarefas, para a empresa não perder o certificado. Por conseguinte, o trabalhador vai se identificando com o modelo padronizado suscitado pelo sistema, e as exigências deste tornam-se inconscientes, de modo que eles se encontram então sob domínio de outros dois sentimentos: a culpa e o sentimento narcisista de fracasso.

Os trabalhadores são os responsáveis pelo bom andamento dos programas: se a empresa não mantiver a certificação e não conseguir a competitividade almejada, é porque eles não se dedicaram efetivamente aos programas, advindo o sentimento de culpa.

Assim sendo “o medo de fracassar, de falhar, e de perder o amor do objeto amado está sempre presente. Esses medos coexistem com a culpabilidade. Esta não se origina no fato de ter realizado um ato contrário à sua consciência ou às exigências do Superego, mas do de não estar à altura das exigências da organização e do ideal que procura atingir” (Pagès e col, 1993, p. 159).

Dejours (1999) define o “real trabalho” como o “savou-faire”, que, de modo geral, seria domínio. Segundo o autor, o sofrimento e a angústia poderão surgir do medo de ser incompetente, de não estar à altura ou de não ser capaz.

No TQC , a busca constante pela perfeição acaba por gerar a angústia, que por sua vez surge da não adequação dos padrões. Segundo o discurso de um dos entrevistados: “Se o produto não tiver qualidade ele não é vendido, não é reconhecido... se o produto estiver bom é certeza que o cliente vai aceitar” (sic). Essa imagem de incompetência é consolidada ideologicamente pela organização. Isto é, ela propõe conscientemente a imagem do produto ideal e consolida ser valor e modelo para os trabalhadores. Estes mantêm-se responsáveis pela produção, pelo seu sucesso e expansão.

Busca e negação do reconhecimento

Vencidos os obstáculos de domínio das tarefas, cujo resultado é obtido em geral, “[...] à custa de esforços que exigem total concentração da personalidade e da inteligência de quem trabalha” (Dejours, 1999, p. 34), os trabalhadores buscam o reconhecimento por este trabalho realizado. De acordo com este autor, quando os trabalhadores não têm esperança de que o reconhecimento ocorra, ou seja, se houver uma negação do reconhecimento, surge um sofrimento muito perigoso para a saúde mental.

Embora os sujeitos da pesquisa tenham demonstrado que percebem um aumento da valorização da empresa pelos esforços e resultados do trabalho, este parece não atender satisfatoriamente a todos os trabalhadores. Eis um dos discursos: “Acho que o chefe tem que se empenhar mais na questão de reconhecimento”(sic).

Mesmo a empresa tendo implantado esquemas de recompensa, benefícios sociais, participação nos lucros, os trabalhadores não consideram isso como reconhecimento; eles querem algo mais, talvez confiança, como foi possível observar na fala de um dos entrevistados: “Falta reconhecimento do serviço, chefia confiar mais”(sic).

Para Dejours (1999, p.34) quando o reconhecimento é negado, há a emergência de um sofrimento que é perigoso para a saúde mental, devido à “desestabilização do referencial em que se apóia a identidade”.

Inflação da carga psíquica no TQC

O TQC padroniza, controla e direciona o conteúdo das tarefas e das relações humanas no trabalho, como verbaliza o trabalhador: “Está exigindo mais fisicamente como mentalmente”(sic). Nesse discurso, percebemos que o trabalhador é de certa maneira, “despossuído de seu corpo físico e nervoso, domesticado e forçado a agir conforme a vontade do outro” (Dejours, 1994, p. 27).

Observamos também que os trabalhadores são mediatizados pelos técnicos especializados, inspetores, gerentes e auditores da qualidade. Essa mediação, nas palavras de Dejours, substituiria o livre-arbítrio do trabalhador pela do empregador. Isso pode ser verificado no seguinte relato: Antes não tinha um engenheiro acompanhando o trabalho, de primeiro eu não pensava em fazer o serviço, antes só pensava em produção, hoje penso em qualidade (sic).

O TQC tem como meta centralizar a atenção dos trabalhadores para a manutenção dos padrões da qualidade: “Passei a prestar mais atenção nas coisas, passei a fazer as coisas melhor, tenho tentado fazer o melhor possível [...]” (sic).

Nota-se que a carga psíquica é intensa por causa das exigências causadoras de medo:

 “ [...]muitas empresas fecham porque seus produtos não são de qualidade”); Sempre tenho medo de perder o emprego. Todo ano, fim de safra, corta funcionário”(sic).

O medo aflora também das constantes mudanças que ocorrem na empresa, pois “os dispositivos de mudança deixam os indivíduos muito dependentes da empresa, visto que esta pode amoldar de maneira ‘arbitrária’ sua trajetória profissional e, portanto, social” (Pagès e col , 1993, p. 122).

O medo de perder o certificado cria o medo precedente de perder o emprego, como nos relatou um trabalhador: “Se a empresa perder o certificado fica ruim se o cara perder o emprego aqui está morto”(sic).

Assim, “os sacrifícios, a ambição, o sucesso, os grandes princípios...tudo isto se torna um engano, uma ilusão, pois aquele que acredita nisso, longe de estar salvo, se encontra vazio de sua substância, como morto. É preciso que tenha necessidade de acreditar, pois mesmo sabendo que é um engano, ele continua fazendo de conta que ainda acredita (Pagès e col., 1993, p. 139)

Estudo e carreira

A implantação do TQC traz uma nova obrigação na vida dos trabalhadores, a obrigação de subir, termo que foi utilizado por Pagès et al.(1993), para mostrar que, na empresa, o indivíduo é constantemente condenado a vencer. E, de acordo com esses autores, o fazer carreira oferece uma ilusão de poder, pois ilude a realidade do trabalhador e lhe serve de máscara. Eis um relato que exemplifica isto:”Voltei a estudar.....injeção de ânimo... estou fazendo tudo para uma promoção”(sic).

Pagès e col (1993) descrevem também que a carreira provoca a alucinação do desejo, mas não sua satisfação; provoca uma alucinação do poder, sem nunca desvendá-lo, reproduzindo assim efeito de poder nos próprios indivíduos. Um dos entrevistados disse: “Gostaria de ser técnico em mecânica, mas para isso precisa estudar, vejo a possibilidade de ascensão profissional. Hoje todas as pessoas mais velhas da empresa voltaram a estudar. É que eles estão pensando no futuro”(sic).

Ao abordar o tema sobre o “poder da ilusão” Pagès e col. (1993) denominaram de “apropriação derivada do poder” a “obrigação de subir”. Isto pode ser exemplificado no seguinte discurso: “Para mim hoje a ISO obriga a estudar mais para que você possa atender toda expectativa que ela pede, chega uma hora que o indivíduo sente que tem que estudar mais, senão fica pra trás”(sic).

Os trabalhadores percebem que, para fazer carreira, há a necessidade de estudar, como demonstrado num dos discursos: “Pretendo subir de cargo, pretendo estudar mais, tenho só a 5º série”(sic). Sobre isso, Pagés e col. ( 1993) assinalam que “é perseguindo o poder que o ativamos”, assim o estudo é um processo do qual se utilizam para obter o poder.

Há também um “investimento da ambição no jogo da carreira”, que pode ser identificada mediante alguns relatos: “Voltei a estudar, com o estudo pretendo ter um cargo melhor, hoje sem estudo a pessoa não é nada”(sic).

Dejours (1999) chama a atenção para o uso do tempo fora do trabalho, salientando que a maioria de nós é obrigada a reciclar-se continuamente. Se levarmos em conta essa “obrigação de estudar” imposta pelo sistema, vemos que isto é mais uma estratégia destinada a manter os trabalhadores dominados, que pode gerar um esgotamento profissional e deste poderiam decorrer patologias, como, por exemplo, alterações músculo-esqueléticas e outras.

A necessidade de fazer carreira não existe sozinha, ela se concretiza com a ambição. “Espero que cada vez melhore mais profissionalmente, mas para que isso ocorra tem que ter estudo”(sic). Essa possibilidade de sucesso dá uma abertura para que o trabalhador também seja reconhecido; dessa forma, “o sucesso, a ambição, fazer carreira vão se tornar para o indivíduo os valores essenciais, pois são eles que podem preencher esta angustia do vazio: para ser reconhecido é preciso vencer” (Pagès e col, 1993, p. 135).

Percebemos que no TQC o trabalhador é “condenado a vencer”, a carreira parece ser o elemento central da relação entre o trabalhador e o sistema. Há uma transformação do desejo em necessidade e o trabalhador “tem o sentimento de estar preso, sugado, de não poder fazer outra coisa senão subir, de não poder mais parar, com risco de recuar” (Pagès e col, 1993, p. 133).

A força do TQC consiste em transformar o estudo em necessidade para o trabalhador subir, ele não tem escolha, ele é realmente levado a isso. Eis um relato que exemplifica o exposto: “A ISO abriu espaço para os funcionários, minha maior expectativa é ser um auditor líder, ele tem uma ampla visão de todo sistema, para isso tem que estudar...Acho que a ISO vai qualificar as pessoas e as pessoas vão aprender bastante com isso”(sic).

A nosso ver, a “alucinação do desejo” correlaciona a necessidade de estudo com o sucesso e, engendra a percepção de que para sobreviver nesse sistema é preciso reproduzir o discurso ideológico, de forma que fazer qualidade significa também fazer carreira. Movidos pelo temor de “não chegar lá”, os indivíduos voltam a estudar.

O seu próprio tempo se modela de acordo com o sistema, é o sujeito que dá o ritmo a sua existência no emprego. “A carreira leva assim os empregados a se encarregar eles mesmos, de um lado, da contradição entre uma carga de trabalho opressiva, uma tensão permanente, pressões importantes; de outro, de seus desejos de liberdade e autonomia. (Pagès e col, 1993, p. 133). A garantia do emprego está no estudo, não importa o curso que faça, o importante para empresa é que ele estude.

De um modo geral, os sujeitos orientam-se pelo imaginário, no sentido literário do termo, o que reforça sua dependência e submissão à organização; isso ocorre porque há uma introjeção da organização pelo ego, ou seja, “o indivíduo reproduz nele o modelo da organização, ele se estrutura em função deste modelo” (Pagès e col 1993, p. 135). Na opinião dos autores, a necessidade de reconhecimento será satisfeita quando ele se reconhecer na empresa. Ou seja, “quando ele não for mais ele mesmo”.

Aprendizado por adestramento

As práticas discursivas do TQC não são apenas modo de fabricação de discurso. Elas ganham corpo nos conjuntos de procedimentos, e nos tipos de difusão e transmissão, basicamente através do treinamento e educação, que ao mesmo tempo o impõem e o mantêm.

A transmissão dos princípios do TQC está ligada a um conjunto complexo, de modificações nos processos de produção, relações sociais e nas políticas administrativas da organização que o implanta.

É preciso admitir que a inclusão do sujeito no sistema se dá pelo aprendizado - instrumento que permite analisar o saber, ou seja, se os princípios definidos foram assimilados, se as exigências estão sendo delineadas.

Esse modelo imposto vai se constituindo em “estatuto de verdade”, a partir da leitura da apostila e do Manual da Qualidade, o que nos foi revelado pelo seguinte discurso: “Os funcionários têm que acompanhar o manual” (sic).

Para Pagès e col. (1990, p. 75) “os ... valores são consignados nos manuais que podem ser considerados como a escritura sagrada e que se concretizam num conjunto de práticas rituais utilizadas pela hierarquia da organização ...”

Nesse sentido, as leis do manual regem e ordenam os modos de trabalhar. A verdade é então mensurável, contestável e visível. A busca do novo é a busca de uma aprendizagem que assegura essa verdade e a legitima.

Foucault, em Teorias e Instituição Penais, afirma que “nenhum poder, em compressão, se exerce sem a extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber” (Foucault, 1979, p. 19).

Assim, vemos que o trabalhador, “para manter seu lugar, conservar seu cargo, sua posição, seu salário, suas vantagens e não comprometer seu futuro e até sua carreira, ele precisa aceitar ‘colaborar’” (Dejours, 1999, p. 73).

Da censura estabelecida nesse sistema, pode-se dizer que o sujeito aprende segundo um modelo padronizado, no qual ele vai sendo adestrado, assujeitando-os cada vez mais à organização. E caso haja oposição ao discurso ideológico, é caracterizado uma insubordinação, não estar na batalha, significando exclusão e eliminação do grupo, como apontaram os entrevistados: “Funcionário antigo que resiste à mudança é demitido;As pessoas hoje procuram produzir mais, sinto que as pessoas estão mais responsáveis pelo que fazem, hoje a pessoa faz por si, tem mais comprometimento com o que faz” (sic).

Vigilante vigiado

Ao reforçar suas práticas, o TQC faz dos trabalhadores sujeitos e objetos de seu controle.Coloca-se inevitavelmente a manutenção e sobretudo a sobrevivência do sistema em suas mãos. Essa faceta de ameaça faz circular sem dúvida uma superestrutura de vigilância.No primeiro ponto, temos um trabalhador vigilante sobre si mesmo, ou seja, nesse sistema, o indivíduo aprende a observar e descrever seu próprio comportamento, configurando o “autocontrole”.Alguns relatos explicam como o sistema rege esse “autocontrole”: Antes, ninguém se preocupava, procuro trabalhar cada vez melhor, aumentou a responsabilidade, o comprometimento com a empresa.

O segundo ponto de vigilância é a vigilância coletiva, ou seja, a convivência com o sistema leva os trabalhadores a se vigiarem constantemente.A gente vê um colega fazendo alguma coisa errada, a gente fala com ele, se ele concorda bem, senão concordar é o chefe que vê.

O sistema está codificado em regras, bem precisas, as quais estão certamente mantidas e regidas por todo um conjunto de obrigações que são impostas aos trabalhadores.

Assim, a equipe de trabalho não deve ser apenas uma teia de relações interpessoais, e sim um mecanismo do próprio controle.Conforme verbalizado por um dos entrevistados:Nos treinamentos da qualidade foi passado que era importante um avaliar o outro.

Nesse sentido, organiza-se um espaço imediato de poder, o que acarreta um efeito que aumenta as dificuldades de relacionamento profissional com os colegas do setor, falta de confiança, lealdade e cooperação grupal.

Podemos ver, no exemplo precedente, um terceiro ponto de vigilância que se instala nesse sistema, isto é, aquele exercido pela auditoria. A pessoa tem que estar preparada o técnico de qualidade avisa quando vai ter a auditoria. Segue o manual, é feito sobre o serviço que a pessoa faz.

Outra frase mostra o peso que o trabalhador carrega para preservar o sistema Sempre eles vem verificar se a empresa está cumprindo os padrões.Este discurso traduz de maneira expressiva como o trabalhador se vê sob vigilância. Essa vigilância exercida pelo sistema age tanto pelo exterior como através da “doutrinação”.

O termo “doutrinação” foi empregado por Pagès e col.(1993), para explicar a função da ideologia e das práticas ideológicas que reforçam a imagem positiva do papel da empresa.

Desse modo, fica claro que um dos meios para se manter a vigilância é a doutrinação e sem essa legitimação do sistema, seus princípios não seriam reforçados e vigiados.

Tomemos como exemplo uma das frase que mostra como a influência ideológica age sobre o indivíduo.As pessoas trabalham com mais responsabilidade pensando no certificado elas cumprem o manual e corrigem o que tem errado.

O quarto efeito da vigilância é o selo da certificação, como disse um dos entrevistados.A certificação abre novos caminhos, a divulgação do produto por exemplo a ISO.Mediante esse selo, o próprio consumidor constitui-se num vigilante, de sorte que a busca do melhor produto é por todos almejada.

Considerações finais

O TQC caracteriza-se pelos princípios da “produção perfeita” e padronizada e seduz a empresa a adotá-lo. O mercado interno e externo, por sua vez, passa a ser o disparador para adoção deste modelo, à medida que incita por meio de seus princípios o da sobrevivência da empresa. Esta sendo assim capturada, deposita nos seus trabalhadores a força opressiva do trabalho, tornando-os responsáveis pelo próprio sistema.

O conteúdo de trabalho no TQC impõe comportamentos estereotipados, levando os trabalhadores à submissão e, consequentemente, à sua sujeição ao sistema, comprometendo o equilíbrio psíquico dos trabalhadores, posto que, há a incitação de desejos que, não sendo realizados, torturam psiquicamente aqueles que não o alcançam.

Quando os trabalhadores têm seus desejos inconscientes reprimidos, de tal modo que não possam encontrar meios simbólicos e imaginários de expressão, estão condenados à repetição, corroborando o desequilíbrio psíquico. Os indicadores para a emergência desse equilíbrio parecem estar acoplados às exigências de padrões, condutas e incorporação de valores estabelecidos pelos programas. Sem a padronização, não há a qualidade total desejada, mas o excesso de padrões diminui a capacidade de o indivíduo criar.

As estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores para enfrentar esse sofrimento trazido pela falta de um trabalho livre frente à padronização, são os macetes. Como exemplo disto: para a manutenção de um determinado padrão, deve-se manter um volume X.  Ao longo da experiência e tempo de trabalho, o grupo conseguir estabelecer um conjunto de macetes, que, acumulados, podem mudar os padrões de X para Y, sem que haja alterações na qualidade do produto, passando despercebido pela auditoria.

Esse conjunto de macetes não está escrito, pois é o trabalho real e não prescrito pela organização. Ele é criado pelos trabalhadores, acumulado e partilhado pelo grupo e isto mantém o sistema funcionando do jeito deles.

Essa manipulação indiscriminada dos critérios de qualidade no terreno do trabalho – e seu emaranhamento com as práticas fraudulentas necessárias para satisfação das “normas ISO” –acaba por provocar a confusão no conceito mesmo de qualidade ( Dejours &Bégue, 2010,p.52).

É provável que uma grande parte das organizações que implantam o TQC desconheçam a possibilidade de seus efeitos sobre a saúde mental dos trabalhadores. Sobretudo, porque esse sistema sustenta o princípio da satisfação total dos trabalhadores, sobressaindo a imagem positiva do modelo ofertado sem outras consequências.

A nova realidade construída é validada coletivamente, indicando que mesmo o sujeito não concordando com o sistema, ele é obrigado a respeitar as condições que lhe são impostas, aumentando frustrações internas, ocasionando perturbações ao seu funcionamento mental.

Dessa maneira, percebemos que as estratégias defensivas nos programas de qualidade total parecem estar acopladas às ideologias defensivas que constituem o domínio da alienação no trabalho. Isso ocorreria porque o sujeito passa a perceber o outro e o mundo que o cerca, negando sua própria percepção, baseando-se em regras grupais pré-fabricadas.

Os trabalhadores não podem mais ser sujeitos de seu comportamento, não há um livre funcionamento da tarefa, o processo de trabalho é delineado por padrões pré-estabelecidos no Manual de Qualidade; isso torna o trabalho fatigante, pois não há descarga de energia psíquica, ocasionando um acúmulo de energia que é consequentemente uma fonte de tensão. Posto que, “ o conflito que opõe o desejo do trabalhador à realidade do trabalho coloca face a face, o projeto espontâneo do trabalhador e a organização do trabalho, que limita a realização desse projeto e prescreve um modo operatório preciso (Dejours, 1994, p. 26).

Na opinião de Dejours ( 1992 ) dois tipos de comportamentos emergem na relação com o trabalho, sendo estes o comportamento livre e o estereotipado.

A compreensão do autor sobre comportamento livre não é entendida como liberdade metafísica, "... mas um padrão comportamental que contém uma tentativa de transformar a realidade circundante conforme os desejos próprios do sujeito" (Dejours, 1992, p. 26). Assim sendo,, no comportamento livre não haveria prejuízo para o trabalhador. Porém, no comportamento estereotipado haveria uma anulação desse comportamento livre, no qual se desenvolveria o sofrimento de forma muda e invisível.

No TQC, esse comportamento estereotipado parece estar constituído a partir da própria filosofia que orienta, pois esse sistema "... é baseado essencialmente num programa de educação e treinamento através do qual todas as pessoas da empresa devem mudar a sua maneira de pensar" (Campos, 1994, p.149).

Ao moldar os comportamentos, mudando-se a maneira de pensar, mudam-se as atitudes, a forma de agir e os padrões comportamentais são cruelmente definidos com base em uma imposição administrativa.

Uma vez instituída essa forma de modos operatórios, há uma desapropriação do saber, da liberdade e da invenção. Cada trabalhador deverá adaptar-se instintivamente à organização e essa adaptação tem uma dimensão psicológica. De acordo com Dejours, "do choque entre um indivíduo, dotado de uma história personalizada, e a organização do trabalho, portadora de uma injunção despersonalizante, emergem uma vivência e um sofrimento" (Dejours, 1992, p. 43).

A vivência, a nosso ver, aparece no círculo vicioso sinistro da "alienação do desejo", ocasionado pelos programas de controle.O termo “alienação do desejo” foi empregado por Pagés e col (1993), para quem "... consiste em antecipar a satisfação que se poderá sentir obtendo qualquer coisa que se deseja" (Pagès e col, 1993, p. 137-138).

Assim, no TQC a alienação do desejo parece atuar com a finalidade de antecipar a satisfação de desejo, pois, o simples fato de ler a filosofia do TQC já faz com que o sujeito se imagine num futuro brilhante, no qual haverá um atendimento total de todas as suas necessidades.Ainda na opinião deste autores, "o prazer não provém do estado, mas do movimento", o que também foi observado num dos discursos: A ISO ... é algo que rola na frente e a gente vai atrás. Nesse sentido, compreendemos que a satisfação total do sujeito no sistema administrativo do Controle de Qualidade Total não está no que ele é, nem mesmo no que ele tem, mas sim no que ele poderia ter ou ser.

Essa vivência fantasiada aproxima-o cada vez mais do sistema, fazendo-o incorporar os valores ditados pela filosofia. Tal vivência não ocorre de forma real, fazendo emergir um sofrimento, que pode "... ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperança e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora" (Dejours,1992, p. 133).

Para Dejours, o sofrimento de natureza mental começa quando “ o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme às suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos - isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada. (Dejours, 1992, p. 133).

O trabalho padronizado elucida regras que são incorporadas imediatamente pelos trabalhadores, diminuindo assim a escolha e o livre arranjo das tarefas; bloqueando a sua relação com o trabalho, o conteúdo com a tarefa torna-se vazio, podendo resultar num sofrimento psíquico no trabalho.

Feita essas conceituações, entendemos que a implantação do TQC pode levar o trabalhador à abertura de novas possibilidades de vida pessoal e profissional, mas pode, também, submetê-lo a uma tensão que chega a comprometer imediatamente o equilíbrio de estrutura mental.

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